terça-feira, 18 de março de 2014

POESIA E FILOSOFIA NA REPÚBLICA DE PLATÃO: SEPARAÇÃO E ENCONTROS POSSÍVEIS

Reflexão feita para disciplina de Teoria Literária - Mestrado PUC

O tratamento que Platão atribui à poesia em seu livro X da República é algo que nos faz refletir acerca da negação da poesia como algo constituinte de uma cidade ideal. Ele afirma que o banimento da poesia é crucial para que se estabeleça uma república ideal, nessa perspectiva, julga-a como corruptora das virtudes dos homens, pois os transforma e os torna sensíveis demais, portanto deve ser banida da cidade.
Entretanto, ao mesmo tempo, Platão reconhece o valor transformador e a força da poesia. Isso pode parecer um contrassenso, já que queria vê-la banida. No entanto, como se pode observar em vários trechos da República, o que Platão critica como poesia, é o fato de ela encantar e tirar as pessoas do seu estado de razão, justamente por criar fantasmas e não mostrar verdades, as quais a filosofia sempre perseguiu. E até a desafia a mostrar-se como algo que traga austeridade ao homem.
Por outro lado, Platão utiliza desse artifício, pois reproduz um diálogo que seria de outrem (o diálogo entre Glaucon e Sócrates). Isso por si só, poderia ser encarado como um dos encontros possíveis entre poesia e filosofia. Entretanto, nesse ponto, essa reprodução não tem a função de distrair ou desvirtuar as pessoas, fazendo-as sair de seu estado normal. Nesse diálogo, ele reproduz didaticamente como seria a cidade ideal, portanto trata de uma temática que irá fazer com que as pessoas sejam virtuosas, não trazendo nenhum prejuízo à razão. Esse seria o modelo de poesia de que poderia ser aceita a poesia, na cidade ideal.
Outro acontecimento que também nos faz pensar essa questão é o fato de Platão utilizar o mito de Er para encerrar o capítulo X. Se ele diz sumariamente que a poesia deveria ser banida da república, por que será que ele utiliza uma forma “poética” para demonstrar as qualidades de um homem virtuoso? Não estaria Platão, com o mito de Er, exemplificando uma maneira de utilizar a poesia (literatura) de uma maneira pedagógica? O mito por si só, e como gênero, tem a função de, por meio de uma narrativa simples, não mimética e direta, passar lições de virtude. Sendo assim, essa seria uma maneira adequada da utilização da poesia, em favor de criar homens virtuosos e assim, construir uma cidade melhor, do ponto de vista platônico.   
No princípio da negação da poesia pela filosofia pode-se encontrar o cerne da questão. Uma separação e um encontro possível. Em todo momento, essa negação, supõe um posicionamento que na verdade não nega, mas toma pra si. Se há a necessidade de se explicar e de não deixar cristalizar a ideia de que a filosofia simplesmente quer banir a poesia da República, à revelia, nisso há um encontro possível entre as duas. Há uma preocupação com a poesia, ou melhor, com o que a poesia pode causar ao homem virtuoso, no sentido do encantamento que ela pode causar e além desse encantamento, também a ruína, de uma maneira sorrateira. E é assim que Platão, a meu ver, não nega completamente a poesia, pois sente a necessidade de se retrata-se, explicando o porquê quer vê-la banida.
Essa preocupação pode ser identificada na parte VIII de A República, quando é dito que: “Digamos ainda a ela, para que não nos acuse de rigidez e rudeza, que há uma antiga briga entre filosofia e poética: uma cadela que, ganindo, late contra seu dono.” (PLATÃO, 2006, p. 399). A partir daí, no diálogo, são citados vários trechos, espécies de provérbios populares, os quais o autor dos fragmentos não pode ser identificado, e que contém aspectos do seguinte provérbio popular: “A voz do povo é a voz de Deus”. Como se esse banimento pudesse ser explicado do ponto de vista das várias vozes que se encontram nesse discurso. Um desses trechos me chama mais atenção, que é o mencionado a seguir: “A cadela que, ganindo, late contra seu dono”, esse trecho sintetiza um pouco a relação antitética entre a filosofia e a poesia. A poesia é representada no discurso como a “cadela”, por mais que ame e seja amada pelo seu dono (no caso a filosofia como representação da verdade), não se mantém em um lugar de completa devoção, há um lugar de conflito entre esses dois seres que, hipoteticamente, coexistiriam de maneira harmoniosa. Porém, a cadela, por conta de sua própria natureza animal, seja por um instinto equivocado ou por um instinto de defesa faz com que, considerada um animal irracional, agrida o seu senhor, causando mal a ele, pelo fato de, ele mesmo, estar distraído e imaginar que o seu animal de estimação nunca o atacaria.
A alegoria da cadela como exemplo, também pode remontar semanticamente ao masculino desse termo, que reporta-se a um homem sem escrúpulos e perverso que prejudica os mais próximos quando menos se espera.
Nesse embate, a filosofia seria comparada ao dono que foi atacado por seu animal de estimação. Ao querer banir a poesia, é abreviado esse caminho, assim não se permite que a poesia desvirtue os homens de bem quando eles menos esperam.
A filosofia busca a verdade, mas a verdade em si, não é filosófica, pois ela tem a liberdade de representar várias situações às quais são imanentes à arte por si só. Os indivíduos, virtuosos ou não, intrinsecamente vivenciam de várias formas as verdades que o cercam. Por mais que a arte possa potencializar os sentimentos e as confusões interiores, essas impressões que o homem tem do mundo externo não vão deixar de serem compreendidas como tais. Portanto a arte pode, ao mesmo tempo, potencializar essas impressões, que não deixam de ser vivenciadas pelo indivíduo e ainda fazê-lo digerir o procedimento de verdade, o qual é imanente à arte.
Não podemos afirmar que a arte seja verdade, mas pode ser a representação da verdade, de acordo com o conceito de verossimilhança. Tem o caráter de entender a verdade, por mais que isso seja muito efêmero, pois a verdade está longe de ser entendida como tal. Sobre isso, é salutar refletir sobre o trecho de Badiou, em Pequeno Manual de Inestética:
(...) a paz entre arte e filosofia repousa por inteiro na delimitação entre verdade e verossimilhança. E é por isso que a máxima clássica por excelência é: “o verdadeiro pode às vezes não ser verossímil”, a qual enuncia a delimitação, reservando, ao lado da arte, os direitos da filosofia. Filosofia que, como se vê, outorga-se a possibilidade de não ser verossímil. Definição clássica de filosofia: a inverossímil verdade (BADIOU, 2002, p. 15).

A citação acima versa sobre o esquema clássico lançado por Badiou, para explicitar o entrelaçamento entre poesia e a filosofia. Aqui podemos inferir que a poesia não tem a intenção de ser verdade, pois a essência dela é mimética. Mas nesse ponto ela também não tem a mínima pretensão de ser verdade, pois é função da arte provocar a catarse no espectador e isso nada tem a ver com a verdade. Dito isso, é possível sugerir que a arte poderia ser absolvida por Platão, no sentido de que ela não se torna uma ameaça à República, e sim uma forma de remédio para uma espécie de anormalidade na alma humana, auxiliando-a ter uma percepção mais clara das “verdades” que cerca qualquer indivíduo, em qualquer época.  

Referências bibliográficas
BADIOU, Alain. Pequeno manual de inestética. Tradução Marina Appenzeller. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.

PLATÃO. A República. Tradução Anna Lia Amaral de Almeida Prado. São Paulo: Martins Fontes, 2006.   

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