Reflexão feita para disciplina de Teoria Literária - Mestrado PUC
O
tratamento que Platão atribui à poesia em seu livro X da República é algo que
nos faz refletir acerca da negação da poesia como algo constituinte de uma
cidade ideal. Ele afirma que o banimento da poesia é crucial para que se
estabeleça uma república ideal, nessa perspectiva, julga-a como corruptora das
virtudes dos homens, pois os transforma e os torna sensíveis demais, portanto
deve ser banida da cidade.
Entretanto,
ao mesmo tempo, Platão reconhece o valor transformador e a força da poesia. Isso
pode parecer um contrassenso, já que queria vê-la banida. No entanto, como se
pode observar em vários trechos da República, o que Platão critica como poesia,
é o fato de ela encantar e tirar as pessoas do seu estado de razão, justamente
por criar fantasmas e não mostrar verdades, as quais a filosofia sempre
perseguiu. E até a desafia a mostrar-se como algo que traga austeridade ao
homem.
Por
outro lado, Platão utiliza desse artifício, pois reproduz um diálogo que seria
de outrem (o diálogo entre Glaucon e Sócrates). Isso por si só, poderia ser
encarado como um dos encontros possíveis entre poesia e filosofia. Entretanto,
nesse ponto, essa reprodução não tem a função de distrair ou desvirtuar as
pessoas, fazendo-as sair de seu estado normal. Nesse diálogo, ele reproduz
didaticamente como seria a cidade ideal, portanto trata de uma temática que irá
fazer com que as pessoas sejam virtuosas, não trazendo nenhum prejuízo à razão.
Esse seria o modelo de poesia de que poderia ser aceita a poesia, na cidade
ideal.
Outro
acontecimento que também nos faz pensar essa questão é o fato de Platão
utilizar o mito de Er para encerrar o capítulo X. Se ele diz sumariamente que a
poesia deveria ser banida da república, por que será que ele utiliza uma forma
“poética” para demonstrar as qualidades de um homem virtuoso? Não estaria
Platão, com o mito de Er, exemplificando uma maneira de utilizar a poesia
(literatura) de uma maneira pedagógica? O mito por si só, e como gênero, tem a
função de, por meio de uma narrativa simples, não mimética e direta, passar
lições de virtude. Sendo assim, essa seria uma maneira adequada da utilização
da poesia, em favor de criar homens virtuosos e assim, construir uma cidade
melhor, do ponto de vista platônico.
No princípio da negação da poesia pela filosofia pode-se
encontrar o cerne da questão. Uma separação e um encontro possível. Em todo momento,
essa negação, supõe um posicionamento que na verdade não nega, mas toma pra si.
Se há a necessidade de se explicar e de não deixar cristalizar a ideia de que a
filosofia simplesmente quer banir a poesia da República, à revelia, nisso há um
encontro possível entre as duas. Há uma preocupação com a poesia, ou melhor,
com o que a poesia pode causar ao homem virtuoso, no sentido do encantamento
que ela pode causar e além desse encantamento, também a ruína, de uma maneira
sorrateira. E é assim que Platão, a meu ver, não nega completamente a poesia,
pois sente a necessidade de se retrata-se, explicando o porquê quer vê-la
banida.
Essa preocupação pode ser identificada na parte VIII de A
República, quando é dito que: “Digamos ainda a ela, para que não nos acuse de
rigidez e rudeza, que há uma antiga briga entre filosofia e poética: uma cadela
que, ganindo, late contra seu dono.” (PLATÃO, 2006, p. 399). A partir daí, no
diálogo, são citados vários trechos, espécies de provérbios populares, os quais
o autor dos fragmentos não pode ser identificado, e que contém aspectos do
seguinte provérbio popular: “A voz do povo é a voz de Deus”. Como se esse
banimento pudesse ser explicado do ponto de vista das várias vozes que se
encontram nesse discurso. Um desses trechos me chama mais atenção, que é o
mencionado a seguir: “A cadela que, ganindo, late contra seu dono”, esse trecho
sintetiza um pouco a relação antitética entre a filosofia e a poesia. A poesia é
representada no discurso como a “cadela”, por mais que ame e seja amada pelo
seu dono (no caso a filosofia como representação da verdade), não se mantém em
um lugar de completa devoção, há um lugar de conflito entre esses dois seres
que, hipoteticamente, coexistiriam de maneira harmoniosa. Porém, a cadela, por
conta de sua própria natureza animal, seja por um instinto equivocado ou por um
instinto de defesa faz com que, considerada um animal irracional, agrida o seu senhor,
causando mal a ele, pelo fato de, ele mesmo, estar distraído e imaginar que o
seu animal de estimação nunca o atacaria.
A alegoria da cadela como exemplo, também pode remontar
semanticamente ao masculino desse termo, que reporta-se a um homem sem
escrúpulos e perverso que prejudica os mais próximos quando menos se espera.
Nesse embate, a filosofia seria comparada ao dono que foi
atacado por seu animal de estimação. Ao querer banir a poesia, é abreviado esse
caminho, assim não se permite que a poesia desvirtue os homens de bem quando
eles menos esperam.
A
filosofia busca a verdade, mas a verdade em si, não é filosófica, pois ela tem
a liberdade de representar várias situações às quais são imanentes à arte por
si só. Os indivíduos, virtuosos ou não, intrinsecamente vivenciam de várias
formas as verdades que o cercam. Por mais que a arte possa potencializar os
sentimentos e as confusões interiores, essas impressões que o homem tem do
mundo externo não vão deixar de serem compreendidas como tais. Portanto a arte
pode, ao mesmo tempo, potencializar essas impressões, que não deixam de ser
vivenciadas pelo indivíduo e ainda fazê-lo digerir o procedimento de verdade, o
qual é imanente à arte.
Não
podemos afirmar que a arte seja verdade, mas pode ser a representação da
verdade, de acordo com o conceito de verossimilhança. Tem o caráter de entender
a verdade, por mais que isso seja muito efêmero, pois a verdade está longe de
ser entendida como tal. Sobre isso, é salutar refletir sobre o trecho de
Badiou, em Pequeno Manual de Inestética:
(...)
a paz entre arte e filosofia repousa por inteiro na delimitação entre verdade e
verossimilhança. E é por isso que a máxima clássica por excelência é: “o
verdadeiro pode às vezes não ser verossímil”, a qual enuncia a delimitação,
reservando, ao lado da arte, os direitos da filosofia. Filosofia que, como se
vê, outorga-se a possibilidade de não ser verossímil. Definição clássica de
filosofia: a inverossímil verdade (BADIOU, 2002, p. 15).
A citação acima versa sobre o esquema clássico lançado por
Badiou, para explicitar o entrelaçamento entre poesia e a filosofia. Aqui
podemos inferir que a poesia não tem a intenção de ser verdade, pois a essência
dela é mimética. Mas nesse ponto ela também não tem a mínima pretensão de ser
verdade, pois é função da arte provocar a catarse no espectador e isso nada tem
a ver com a verdade. Dito isso, é possível sugerir que a arte poderia ser
absolvida por Platão, no sentido de que ela não se torna uma ameaça à
República, e sim uma forma de remédio para uma espécie de anormalidade na alma
humana, auxiliando-a ter uma percepção mais clara das “verdades” que cerca
qualquer indivíduo, em qualquer época.
Referências
bibliográficas
BADIOU, Alain. Pequeno
manual de inestética. Tradução Marina Appenzeller. São Paulo: Estação
Liberdade, 2002.
PLATÃO. A República.
Tradução Anna Lia Amaral de Almeida Prado. São Paulo: Martins Fontes,
2006.